Poema- O Paradoxo


Se eu te amo?
Sim. Mas o amor não é essa flor que se dá.
É a terra que a engole quando murcha.
É a mão que cava mesmo sem saber plantar.
Vamos casar? Talvez.
Mas antes, te convido à prova de fogo:
amar quando não houver música,
quando as vozes forem ausências,
e o outro parecer um estranho usando tua camisa.
Vamos ter filhos?
Quem sabe.
Mas primeiro, me diz
tu és capaz de amar alguém que te fará espelho?
Que vai te repetir os defeitos
com olhos pequenos e perguntas grandes?
Antes de fazer um berço,
faremos um acordo
não criar filhos para curar vazios.
Nem criar um cachorro para evitar conversas.
Nem um ao outro como projeto de salvação.
A prova de fogo não é a dor.
É o tédio.
É lavar louça às 23h em silêncio.
É discordar e mesmo assim comprar teu chocolate preferido.
É o segundo depois da discussão 
quando se pensa em ir embora,
mas o corpo fica
porque o amor não terminou,
só cansou.
Vamos morar juntos?
Sim, mas num lugar onde caibam
as tuas vontades
e as minhas dúvidas.
E as visitas inesperadas do passado.
Porque o amor que não aceita rachaduras
nunca construiu nada real.
E o real é imperfeito, irregular,
como teus medos,
como meus traumas
como nossos domingos sem planos.
A prova de fogo, amor
é esta Saber que podemos não dar certo 
e mesmo assim, tentar.
Talvez não tenhamos filhos.
Talvez criemos poemas.
Talvez choremos com filmes ruins.
Talvez sejamos eternos apenas por um verão.
Mas se você me olhar agora
e ainda quiser ficar
com tudo isso
com o incerto
com o possível desastre 
então te prometo
Não serei tua metade.
Serei tua escolha.
E juntos nem precisaremos do cachorro.
Dois corpos, um só fio.
Nem chão, nem céu 
apenas um talvez estendido entre o abismo e o afeto.
Andar juntos na corda bamba
é desenhar uma dança que ninguém ensinou.
É colocar o pé onde o outro ainda não pisou,
e torcer para que o ar se torne caminho.
Não há mapa.
Só o ritmo do outro
como bússola instável.
Às vezes tropeço,
e é tua mão que me segura.
Outras vezes tu escorregas,
e sou eu quem inventa o equilíbrio.
É um pacto mudo
não cair ao mesmo tempo.
Cada passo é uma pergunta
Tu ainda estás comigo?
E cada respiração, uma resposta invisível
Sim, estou mesmo sem saber até quando.
Na corda bamba,
não somos mais dois.
Somos a hesitação em forma de par.
Somos a fé que flutua.
Somos o ensaio de uma queda que nunca se completa.
A gravidade tenta nos convencer a desistir.
Mas seguimos, com olhos que falam
É perigoso, mas é contigo.
E talvez esse seja o segredo
não andar para chegar,
mas andar para sentir
que a presença do outro
é o próprio chão que não existe. Tem uma fome em mim
que não é de comida.
Nem de toque.
Nem de palavras bonitas.
É uma coisa funda,
antiga que mora entre o ventre e o pensamento.
Uma urgência de ser 
sem pedir licença.
É o desespero mudo de tantas de nós,
quando tudo está bem,
mas algo falta.
Quando dizem “você tem tudo
mas a alma responde:
e eu?
É o que as mulheres sentem
e não sabem explicar.
Mas sentem.
No meio da pia cheia
no sutiã apertado
na reunião onde falam por cima,
na cama onde se deitam com alguém
e saem de lá sozinhas.
É o grito abafado que diz
quero ser mais do que útil.
Mais do que mãe, esposa, forte, bonita.
Mais do que esperam de mim.
É o desejo de ser inteira
sem ter que quebrar ninguém.
De cuidar sem se anular.
De sangrar e ainda assim ser levada a sério.
Esse algo, esse desespero,
é o que chamam de drama 
mas que, no fundo
é só a alma pedindo espaço.
Pedindo me vê, me ouve, me deixa existir sem me moldar. É esse o incêndio calado que carrego. E se um dia me vês chorando sem motivo, acredita o motivo é exatamente esse 
tudo o que não cabe numa mulher
que aprendeu a caber em tudo.

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